Provavelmente o evento precursor desse “pânico”, terá sido o ataque cardíaco de Dwight Eisenhower, em Setembro de 1955. O então presidente norte americano esteve ausente da Casa Branca por mais de uma semana, o que realmente assustou deveras todos os norte-americanos. O mesmo teria já acontecido com vários outros políticos, industriais e demais figuras influentes na sociedade norte-americana, com um assustador número de casos de uma doença que até aí era quase desconhecida. Essas questões impuseram uma enorme pressão à classe médica e científica para produzir quer justificações, quer estratégias e directrizes para combater essa crescente “epidemia”. Em meio a toda essa vaga de preocupação, reúnem-se diversas ideias e “hipóteses“ que viriam a cimentar a chamada hipótese lipídica ou “diet-heart hypothesis” de Ancel Keys, que defenderia que maior ingestão de gordura em geral, e de gordura saturada em particular, provocaria doenças cardiovasculares. Várias considerações, experiências e estudos observacionais levariam ao Mito da Gordura Saturada como causador da epidemia cardiovascular, tentarei aqui simplificar uma longa história, através do sublinhar dos seus “pontos altos”:
Cronologia resumida de um mito…
1904 Aparentemente terá sido Felix Marchand a introduzir pela primeira vez o termo “aterosclerose”, sugerindo que a aterosclerose era responsável por quase todos os processos obstrutivos nas artérias.
1908, A.I. Ignatowski descreveu uma relação entre alimentos ricos em colesterol e aterosclerose experimental (induzida em experimentos laboratoriais).
1910, Adolf Windaus demonstrou que as lesões ateromatosas continham 6 vezes mais colesterol livre e 20 vezes mais colesterol esterificado do que uma parede arterial normal.
1913, Nikolai N. Anichkov demonstrou que colesterol causou alterações ateromatosas na parede vascular.
Nikolay Anichkov, (autor de estudos pioneiros sobre aterosclerose e o papel do colesterol na formação de ateromas ou placas ateroscleróticas) divulgou em 1913 uma experiência com COELHOS (um aperfeiçoamento das experiências de A.I. Ignatowski) que, ao serem alimentados com grandes quantidades de colesterol (carne, ovos e leite), desenvolveram alterações ateroscleróticas, muito “semelhantes” à aterosclerose humana. Nikolay Anichkov era um dos cientistas mais respeitados na sua época e o esse estudo popularizou-se, tendo sido amplamente replicado, em cavalos, ovelhas e outros animais, com resultados semelhantes, o que reforçava a ideia de que o colesterol na dieta seria responsável pelos aumentos do “colesterol serum” (colesterol sanguíneo). Mais tarde algumas contestações desse estudo sublinhavam que animais herbívoros naturalmente não estariam adaptados à metabolização de colesterol (de origem animal). Estudos feitos com cães (que estão, como os humanos, adaptados ao consumo de carne e produtos de origem animal), viriam a demonstrar que doses elevadas de colesterol na dieta não se traduziam em aumento minimamente significativo de colesterol no sangue, o que indicaria a existência de um mecanismo de regulação. Não obstante a publicação desses estudos, estava firmemente estabelecida a ideia de que a ingestão de colesterol teria influência directa na elevação do colesterol no sangue e na aparente consequente formação de placas ateroscleróticas
1937, dois bioquímicos da Universidade de Colômbia viriam a formalizar uma teoria que associava a ingestão de colesterol com aumento de colesterol no sangue, propondo que a restrição de colesterol na dieta teria o efeito contrário (redução de colesterol no sangue) e consequente redução do risco de doença cardíaca.
1952 surge a invenção da Cromatografia Gasosa, um processo que permitiria separar os diversos componentes de um composto. A descoberta desse processo viria a revolucionar a investigação lipídica (até aqui a investigação de macronutrientes com associação a doenças cardiovasculares estava focada em proteínas e hidratos de carbono). A cromatografia gasosa possibilitou a separação das gorduras nos seus vários Ácidos Gordos e mais tarde a identificação das fracções de colesterol, lipoproteínas e afins (LDL, HDL, etc…). Uma verdadeira “explosão” de estudos lipídicos surgiu e todos os anos aumentavam os subsídios a novos estudos…
1952 Ainda sobre o colesterol na dieta como directamente associado à elevação de colesterol no sangue, Ancel Keys referia acerca dessa teoria, que existiriam “evidências inquestionáveis” em sua defesa…
1957 o mesmo Ancel Keys, viria a abandonar essa teoria, considerando-a refutada, após diversas experiências com voluntários (humanos). Ancel Keys mediu o aumento de colesterol no sangue numa dieta com ingestão de enormes quantidades de colesterol – cerca de 3.000mg de colesterol diário – (para comparação, um ovo grande terá pouco menos de 200mg…). tendo descoberto que não obstante ingestão de tão “absurda” quantidade de colesterol, o aumento de colesterol no sangue não era minimamente significativo. Tal como na anterior “experiência canina”, parecia existir um “mecanismo de compensação” dos níveis de colesterol no sangue.
Vários outros estudos viriam a confirmar a NÃO associação da ingestão de colesterol com o aumento de colesterol no sangue. Tudo isto ainda antes da década de 60… no entanto, infelizmente, apesar de tanta informação contraditória e de terem redondamente falhado, tantos estudos financiados na intenção de tentar provar a hipótese lipídica, as mentalidades anti-gordura ainda se mantêm genericamente retrógadas… felizmente cada vez mais cientistas e autores se fazem ouvir numa tentativa de erradicar mitos e transmitir boa informação baseada em evidências científicas…
Sobre os vários tipos de gordura e o importante papel da gordura no nosso organismo, podem ler ou reler aqui…
Para ler a parte 2 deste artigo:
Mito da Gordura e Colesterol | Parte 2 – Gordura Saturada